31.3.08

Anchieta - Literatura como instrumento para a salvação

Olá, pedacinhos,

Vamos aproveitar o dia de chuva para revisar para a prova vindoura com a literatura de Anchieta? Quem sabe o debate sobre se o que Anchieta escreve é ou não é literatura não aquece um pouquinho essa segunda-feira?

O Padre Anchieta nasceu em Tenerife, nas Canárias, ilha no Atlântico onde predominava o idioma espanhol. Depois seguiu para Portugal, onde se formou na ordem dos jesuítas, e de lá veio para o Brasil, com a missão de converter e "civilizar" o território brasileiro, e zelar pelas almas dos católicos que para cá vinham em missão de exploração e domínio. Em sua missão auxiliou a fundação de São Paulo, estudou a língua dos índios e, principalmente, escreveu muito para moralizar o comportamento dos católicos já convertidos e, principalmente, para moralizar, segundo a ótica contra-reformista cristã, o comportamento dos índios.

É por isso que, embora para isso Anchieta use os gêneros literários lírico e dramático (de textos narrativos feitos para serem representados por atores), o que Anchieta faz não é literatura proprimente dita. Sua principal intenção é agir sobre o receptor da sua obra, provocar nele um efeito de arrependimento e de mudança de conduta. Portanto, a função de seus textos é apelativa, conativa, embora a preocupação estética exista.

E que preocupação estética é essa? O que significa preocupação estética?

Estética é a ciência (no sentido de conhecimento teórico) do belo. Preocupar-se com a estética é preocupar-se com a beleza - de um texto literário, no caso. Ao escrever a literatura de catequese, seja a obra um auto (gênero dramático) ou poemas, hinos e canções religiosas (gênero lírico), Anchienta, por exemplo, usa versos de metrificação medieval, ou seja, as redondilhas.

Eu explico o que é metrificação - não precisa se assustar!

Métrica é a extensão, o comprimento de um verso. Ela é medida pela quantidade de sílabas que um verso tem. Essas sílabas são contadas de uma forma especial, chamada escansão. E não, você não precisa saber como fazer isso na prova. Basta saber que ela existe e que Anchieta usa o modelo de comprimento (métrica) típico da Idade Média, que é a redondilha (versos de 5, 6 ou 7 sílabas).

O teatro de Anchieta é, então, feito em versos? Sim, pois era uma forma de auxiliar a memorização do texto (a maior parte das pessoas, na época, não sabia ler - os atores decoravam o texto ouvindo o autor). E a preocupação de Anchieta de tornar tudo claro e fácil para o seu público é tão grande que ele escrevia suas peças em até três línguas diferentes, as mais faladas no Brasil daquela época: espanhol, tupi e português.

Observe, então, que os recursos de que Anchieta lança mão não apenas são recursos estéticos, mas também formas de agir sobre o seu interlocutor (o que demonstra mais uma vez a intenção persuasiva dos seus textos). A língua usada, a metrificação dos versos, as rubricas do texto, o maniqueísmo dos personagens, tudo corrobora para que os índios (público-alvo principal) se convençam de que devem abandonar seus hábitos - considerados pecaminosos - e passar a agir como os brancos.

Rubrica? Maniqueísmo?

Um texto dramático (feito para ser representado) se estrutura através de dois elementos: os diálogos dos personagens e as rubricas. Essas rubricas são as indicações do autor da peça a respeito de uma série de coisas que precisam ser feitas para que os diálogos pareçam ser verdadeiros: que ações devem ser feitas pelos atores, como eles devem se vestir, que emoções devem ser dadas a cada fala, que luz ou música deve ser tocada ou cantada para se conseguir emocionar a platéia... A rubrica não é dirigida apenas aos atores, mas a todos envolvidos na encenação e ela vem destaca no texto, geralmente em itálico ou em itálico e entre parênteses.

Maniqueísmo é a polarização completa entre bem e mal. Como Anchieta escreve autos, peças de cunho medieval que tentam moralizar o comportamento dos fiéis, reproduzindo uma mentalidade medieval, contra-reformista (e não Renascentista ou Classicista, como era a arte do período), para ele o mundo é estruturado de forma bem simples: de um lado está o Bem, do outro o Mal, e eles disputam a alma humana. Do lado do Bem está Deus, os anjos, os santos católicos. Do lado do mal os demônios e todos aqueles que agirem de forma contrária à lei de Deus e aos costumes cristãos.

Nas peças de Anchieta, isso se realizava, na estória dos autos, da seguinte forma: de um lado estavam os padres católicos, anjos, santos e seres alegóricos (metáforas), como o Amor de Deus e o Temor de Deus, lutando para salvar os índios. Do outro estavam criaturas demoníacas, os pajés e os índios que cediam aos "vícios", como beber cauim, comer carne humana, ceder ao desejo sexual fora do casamento monogâmico (com uma única pessoa). Esses seres demoníacos tentam impedir que os índios sigam a lei de Deus, conduzindo-os, portanto, ao inferno.

Observe que no Auto da Festa de São Lourenço, no trecho lido em sala, ressalta-se muito o hábito de beber cauim como algo que dá prazer aos demônios. É uma forma de Anchieta tentar convencer os índios de que essa atitude deve ser abandonada e ilustra um conflito que na época não se restringe à literatura: o conflito entre a moral cristã portuguesa e a cultura indígena. Uma, repressora, tende a conter os prazeres mundanos em nome da salvação da alma; a outra vivencia o prazer imediato, sem atribuir a essas atitudes uma conotação positiva ou negativa.

Em tempo: Anchieta não escreveu apenas peças de teatro. Além dos outros gêneros explorados para fazer a literatura de catequese, ele também escreveu literatura de informação, como, por exemplo, a primeira gramática descritiva do tupi, que ensinava os europeus a língua mais falada na costa brasileira.

Por hoje é isso. Boa prova!

24.3.08

A Carta de Caminha

Olá, pessoas!

Queria MUITO ter postado isso aqui antes, mas sem internet em casa é muito complicado me dedicar aos textos de apoio daqui. Pelo menos consegui vir um pouquinho antes das provas. Um pouquinho igual a um triz para alguns de vocês. Então, por isso mesmo, chega de blablablá e vamos direto ao que interessa: a Carta de Caminha.

A Carta de Caminha é o documento de maior destaque da literatura de informação do nosso Quinhentismo. O fato de ser o primeiro texto acerca do Brasil, o que lança a discussão a respeito de que lugar é esse e quem são esses que o habitam é um dos motivos principais para isso. Um dos principais, mas não o único. Caminha é um escrivão dedicado e que procura se destacar em sua atividade aos olhos do rei (até mesmo para poder ousar a fazer o pedido de regresso de seu genro, José Osório ao território da Metrópole, no fim da carta) e para isso minuncia ao máximo que pode em sua descrição acerca do novo território conquistado. Com isso, o registro por ele feito do deslumbramento com a geografia brasileira e o choque cultural com os gentios é cuidadoso, preciso e, aparentemente, imparcial.

Aparentemente porque, embora Caminha anuncie que pretende ser objetivo na Carta, a sua perspectiva pessoal a respeito do índio brasileiro e de seus costumes se faz notar. O índio é reiteradamente descrito como belo, bom, inocente, quase um bom selvagem de Rousseau 200 anos antes da teoria do filósofo francês. Nem mesmo o fato de os nossos indígenas não perceberem a figura de autoridade em Cabral, na sua postura de chefia (sentado, bem vestido e com o colar de ouro) é assinalado como falta de civilidade: o escrivão prefere ressaltar o comportamento indígena ao se deparar com o ouro do colar e a prata do castiçal e daí conjecturar a existência desses metais naquela terra.

Além disso, o índio aparentemente está moldado para receber a religião cristã: o índio aparentemente não tem crenças (é a impressão obtida no primeiro contato) e tende a imitar os cristãos em seus ritos (como ocorre durante a missa realizada para a comemoração da Páscoa). Claro que essa imitação não se dava por uma tentativa de incorporação da religiosidade cristã, mas sim por uma tentativa de apreender a língua e os costumes da cultura portuguesa, que surpreendia os gentios tanto quanto a sua surpreendia os portugueses. Entretanto, num período de histeria religiosa, qualquer sinal positivo a respeito da receptividade ao catolicismo seria fatalmente interpretado como tendência à conversão.

Por fim, a nudez do índio é fruto da inocência e é motivo de admiração não apenas pelo seu elemento exótico, mas também porque os corpos dos índios são belos e, como ele sempre ressalta, as vergonhas das índias são "saradinhas", tão saradinhas que fazem vergonhas às mulheres européias "não terem as suas como as delas".

O uso da palavra vergonha, na Carta, por sinal, é um recurso bastante interessante. Atrevendo-se a usar um certo estilo pessoal, o cronista Caminha freqüentemente faz um jogo com os significados da palavra, que usada tanto para se referir ao pudor sexual do colonizador, cuja educação moral e religiosa encara a nudez de forma repressiva, como aos órgãos sexuais dos gentios. Vergonha e sexualidade são elementos intimamente conectados na cultura portuguesa nesse início de Idade Moderna, visto que a ligação do Estado e da cultura de Portugal à mentalidade Contra-Reformista inibe o avanço do antropocentrismo e, conseqüentemente, da valorização do homem, de seu corpo e dos prazeres que se pode desfrutar através dele.

Vale destacar também, a respeito da Carta, a postura de Caminha em não apenas demonstrar para o rei o valor dos indígenas, mas também valorizar os esforços da expedição e os benefícios que Portugal pode ter em se dedicar à colonização do local. Observe que não apenas o escrivão, no início da Carta, expõe detalhadamente os procedimentos para a aproximação da terra, mas também isenta a culpa da falta de entendimento entre nativos e colonizadores do intérprete para isso designado. Para uma expedição que contava com três intérpretes (Nicolau Coelho, Gaspar da Dutra e um negro de nome desconhecido) , uma falha desse tipo era vergonhosa. Caminha, ciente disso, procura uma outra causa para a falta de comunicação que não o fato de a língua dos indígenas encontrados ser completamente desconhecida - e nisso culpa o barulho das ondas do mar.

Quanto aos benefícios da colonização, a postura de Caminha assinala o quanto a cultura portuguesa de sua época está atada aos ideias Contra-Reformistas que imperaram em Portugal. Visto que a ambição de conquista material aparentemente não poderia ser satisfeita na colônia naquele momento - não foi encontrado ouro, nem prata, nem ferro - é a conquista espiritual da colônia um bem precioso que merece os esforços de cruzar o Atlântico. Essas duas ambições (que geraram os dois tipos de produção escrita no Brasil no século XVI - a literatura de informação e a de catequese), a conquista material e espiritual do Novo Mundo, são igualmente expressas na Carta.

Para terminarmos, por hoje, uma informação curiosa: Caminha pouco observou de nossa terra ao vivo. A maior parte do tempo, ele ficou recluso no navio, compilando as informações transmitidas pelos expedicionários que realmente desembarcaram. O único momento que se sabe que possivelmente ele vivenciou com os pés no chão brasileiro foi o da primeira missa, por ele relatada.