23.8.08

Gregório de Matos - o lirismo de uma boca maldizente

Hello, hello, hello

Povinho meu. Cá estamos de novo, em pleno fim-de, pensando em prova. C' est la vie. Depois piora! :P

Fique de postar sobre Gregório hoje e não posso deixar de comentar que estou aqui com o filme de Ana Carolina (não a cantora, a diretora de cinema) Gregório de Mattos. É uma produção nacional de 2002 muito interessante, com o poeta Waly Salomão (falecido de câncer em 2003, aos 59 anos de idade), no papel do bardo baiano, e Marília Gabriela. É interessantíssimo ver a atuação de Waly Salomão, grande poeta contemporâneo, que com certeza vocês conhecem sem conhecer (ele é o co-autor de canções como Assaltaram a Gramática, dos Paralamas, e Vapor Barato, música que Zeca Baleiro e o Rappa gravaram) . Ele, poeta popular do século XXI, foi uma ótima escolha para fisicalizar o poeta popular do século XVII. Poeta popular é poeta popular em todas as épocas, boemia não é uma escola literária para ser datada. Até eu, que tenho dificuldades seríssimas em acompanhar um poema só de ouvido me deleitei com as declamações de Salomão. Juro que dá para visualizar o que pode ser que tenha sido Mattos, ali, numa re-vivência que só a arte permite acontecer.

O que pode ter sido Mattos porque ninguém sabe exatamente quem ou o que Gregório de Mattos foi. O consenso geral, mais interessante para nossa imaginação, é que ele foi um poeta libertino, que vagava com viola às costas, meio bêbado, declamando suas sátiras e poesias pornográficas inclementemente pelas ruas de Salvador. Mas há quem defenda que ele não foi nada disso. Que o fato de sua sátira ser tão mordaz se justifica pela proximidade dela com as cantigas de maldizer medievais, que eram exatamente assim.

Pode ser um e outro. Mas acaba sendo é o primeiro. Morto o homem, resta a obra e o personagem que ele se faz nela. E é muito mais encantador esse personagem meio louco, destemido, do que um burocrata que se atém às regras de desenvolvimento de cada gênero literário que se produzia.

O importante dessa divergência toda sobre quem e como Gregório de Matos (ou Mattos, segundo a grafia da época) era é que ela se baseia justamente no dilaceramento da personalidade poética dele. É no mínimo intrigante como aquele homem que produzia poemas líricos de temática religiosa tão contritos também é o mesmo escritor que produz sátiras tão contundentes. A "musa", como os poetas dessa "Era Clássica da Literatura" (séculos XVI, XVII e XVIII, quando a poesia é consumida pela aristocracia) chamavam a inspiração e a própria arte poética, de Mattos é a "musa praguejadora", tão ciente daquilo que é certo, tão auto-consciente de seus próprios erros e vícios (na lírica religiosa há sempre a consciência de que o autor é um pecador destinado ao inferno, a não ser se salvo pela misericórdia divina), que não permite passarem a limpo os vícios e erros daqueles que o cercam. Religião, amor, filosofia e sátira são, portanto, faces complementares de uma mesma consciência do mundo, os lados de uma mesma moeda, que conhece todas as experiências do viver humano sobre a Terra. E, principalmente, que sabe quais dessas experiências são elevadas e destinam o homem a ser melhor do que é, e quais tornam o homem pior do que ele é. Por isso a necessidade da sátira: ridendum castigate mores, lembram?

Dois lados da vida, duas vivências poéticas- a lírica e a satírica - duas formas poéticas - a clássica e a medieval. A vida barroca é dupla, tensionada em opostos que se tenta, sem sucesso, harmonizar. Assim também é a obra poética de Gregório. O amor, nos sonetos (forma clássica), tende ao espiritualismo; nos textos de forma medieval, à sensualidade. Se há espiritualismo e sensualidade nos sonetos, cria-se o conflito dezejo x refreamento, e lá vem a construção da mulher como um ser paradoxal, anjo e demônio. Paradoxo que nas sátiras surge na figura das freiras por quem o eu-satírico/pornográfico manifestava desejo. A religião é encarada, nos textos de estrutura medieval, com sincero sentimento de humildade perante Deus e de consciência de sua condição submissa a ele; nos sonetos, vem imbuída de um racionalismo que disseca a relação homem x Deus de forma sempre a favorecer o homem. Já que Deus é onipotente e perfeito e o homem, no pólo oposto, é limitado e imperfeito, a vantagam de Deus sobre o homem favorece o pecador, pois é Deus, por sua superioridade, que tem o dever sobre o homem, sua criatura, sua responsabilidade. A filosofia, presente quase que unicamente nos sonetos, é assinalada pela consciência da condição miserável do homem na Terra, destinado que está ao sofrimento e à morte, porque é efêmero, como são efêmeras todas as coisas.

E a sátira? É a manifestação política, em que não interessam mais os vícios desse eu, mas dos outros. É nela que Matos denuncia todos os elementos da Bahia, poupando, segundo ele, em versos de profunda ironia, apenas os nobres "porque o nobre, enfim, / é quem honra tem".

Dois lados da vida, duas vivências, duas formas poéticas... Mas um estilo, que se permeia com mais ou menos intensidade em todos essas facetas artísticas e pessoais. E como é esse estilo pessoal do autor? É aquele que, por ser poeta barroco, recorre ao paradoxo, à antítese, ao hipérbato para se expressar, e por ser poeta popular, se vale do trocadilho, da ambigüidade. E que também, por ser poeta barroco, gosta de usar palavras preciosas, vocabulário rebuscado, e por ser poeta popular, gosta de apelar, também, para a linguagem popular, naquilo que tem de mais expressivo e marcante: os palavrões. E o cada coisa em seu lugar só valendo para esse último item, pois, se não há na poesia lírica a presença dos palavrões, todo o resto pode ser encontrado em qualquer gênero, temática e forma.

Esses são elementos básicos da poesia de Gregório, os básicos mesmo. Para saber mais, só tem um jeito: fuçar a obra dele. Por isso, deixo aqui um link para o site que considero que melhor organizou a obra de Gregório. Se joguem nele!

21.8.08

Comentário das questões - Fichas de exercícios 13 e 15

Ficha de exercícios 13

Questão 1
Gabarito: C

Comentários:
Vieira afirma que para ele "não há escravo que não seja matéria de profunda meditação". Portanto, impossível pensar que ele afirma não existirem escravos no Brasil. O que ele percebe é que há escravos mais miseráveis que os outros "e mais quando vejo os mais miseráveis".
Vieira defendeu a abolição dos escravos indígenas, não dos escravos negros. No texto, o atingir a liberdade não é mencionado, a não ser na segunda vida, a vida espiritual.
Vieira reitera, no segundo parágrafo do texto, vários elementos que mostram que os escravos são homens como todos os outros. São filhos do mesmo Adão e da mesma Eva, suas almas foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo e seus corpos nascem e morrem os de todos os homens livres.
Os escravos estão todos, segundo Vieira, "devotos e festivais diante dos altares da Senhora do Rosário".


Questão 2
Gabarito: C

Comentários:
As torturas mórbidas descritas por Vieira foram aplicadas aos mártires da igreja católica, pelos romanos. Não se relacionam com nenhuma realidade do inferno.
O Barroco não busca o prazer, mas a contrição. A dramaticidade e a tensão entre os opostos não permite que esta arte atinja a harmonia.

Fique ligado! Essa questão pedia os itens INCORRETOS!


Questão 3

Item A
O tema, contido no tópico frasal (primeira declaração do texto), é o não fazer fruto da palavra de Deus. Isso signfiica que provavelmente o excerto é do Sermão da Sexagésima.

Item B
Os elementos que Vieira quer diferenciar são "pregador" e "o que prega". Para isso ele mostra a diferença entre "semeador" e "o que semeia", "soldado" e "o que peleja", "governador" e "o que governa". A diferença, para ele, é que enquanto uns têm apenas o título, e não executam aquilo que se espera da função, os outros, embora não tenham esta função social, são aqueles que realmente se tornam soldados, governadores e semeadores, porque é a ação que define o homem e seu caráter.


Questão 4

Item A
Um texto com função conativa/apelativa é um texto que visa convencer o leitor a fazer alguma coisa ou pensar de alguma forma. Para fazer isso ele usa argumentos e emprega verbos no modo imperativo.


Item B
Reparai

Item C
Modo imperativo, 2ª pessoa do plural



Questão 5
Gabarito: E

Comentários:
Usar os peixes como exemplo das ações humanas é uma alegoria. A afirmação "Os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros" encerra em si uma comparação. O texto de Vieira usa seus recursos estilísticos e estéticos para persuadir o ouvinte, sempre.
Para se tentar convencer alguém, é preciso haver esse "de quê" a respeito do qual a pessoa precisa ser convencida. O homem barroco, no Brasil e em Portugal, deve ser convencido a ter uma vida contrita, ligada a Deus, com profunda introspecção religiosa. Esse é um resgate de um comportamento medieval, que se opõe à mistura de influências pagãs (greco-romanas) e medievais que aconteceu no Renascimento.
Para atingir a dramaticidade basta o apelo às emoções, coisa que Vieira sempre faz. E exercer uma didática moralizante é tentar ensinar o homem aquilo que é certo.
A cobiça humana é citada textualmente, um tema fácil de identificar. O conceptismo é a vertente estética de Vieira.



Questão 6
Gabarito: E

Comentários:
Vieira é um padre católico apostólico romano durante a vigência da Contra-Reforma. Ele não se liga a ideais antropocêntricos, renascentistas, nem acredita que a ambição humana é algo positivo.
No trecho, a expressão "maior que" forma uma comparação.



Ficha de exercícios 15


Questão 1
Gabarito: A

Comentários:
O texto não possui temática religiosa. As informações a respeito da poesia religiosa do século XVII (ou seja, barroca) estão incorretas, pois descrevem uma preocupação típica do Quinhentismo.
A poesia neoclássica é a poesia do século XVIII, do movimento conhecido como Neoclassicismo ou Arcadismo. Portanto, já não se relaciona a Gregório de Matos. Além disso, não há n texto uma tendência pedagógica, pois o eu satírico não intenta ensinar como se deve proceder, apenas criticar o comportamento que existe na sociedade de sua época.
Como o texto não possui temática religiosa, não pode se relacionar com a temática do pecado e do perdão.
Se o texto é barroco, não pode ser neoclássico. As reflexões de Gregório de Matos sobre o perfil moral baiano nunca possuem tom lírico (sentimentalista), mas sempre satírico.


Questão 2
Gabarito: B

Comentários
O poeta comenta no texto que Salvador se tornou próspera, mas não de que maneira isso aconteceu. Portanto, não atribuiu essa prosperidade a nenhuma razão específica.
Matos não repudia os portugueses como colonizadores, mas como usurpadores dos bens da colônia, e não nesse texto, mas em outros poemas. Da mesma forma, ele não defende índios e negros. Sua sátira tem muitas conotações preconceituosas contra os negros, os mestiços e os índios, o que ele demonstra no poema ao mostrar que essa prosperidade e nobreza da Bahia é falsa, por se basear nos escravos e nos gentios.


Questão 3
Gabarito:FVFFF

Comentários:
O eu poético não prega a insanidade, a loucura. O que ele chama de insanidade é o fato de o comportamento errado do ser humano ser mais forte e mais perene do que o comportamento correto. Contra esse comportamento ele se manifesta, lamentando que assim sejam as leis do mundo e que o errado prevaleça sobre o certo.
A visão de Matos sobre a Bahia nunca é complacente, maleável, condescendente, benigna.
Se o texto se esgotar no tempo e no espaço, não se pode perceber que a realidade que ele descreve vale para o momento atual, ou outros momentos da existência humana. E, claro, isso não é verdade.
O individualismo acaba sendo postivo, porque significa não andar como os outros, ou seja, errado. Mas também há a percepção de que essa é a atitude mais difícil, e que mais cômodo é para o indivíduo não ser sério (sisudo) e se tornar louco (errado) como os demais.


Questão 4
Gabarito: D

Comentários:
Aqui vale mais comentar o próprio gabarito, já que é a única afirmação incorreta. O Barroco é um movimento espiritualista, não materialista. Sua visão de mundo é pautada na fé e na emoção, e não na razão.


Questão 5
Gabarito:D

Comentários:
Embora na primeira estrofe, ou seja, o primeiro quarteto, também haja havido a disseminação, ou seja, o lançamento de termos, não há alternativa que mencione os dois quartetos e o primeiro terceto. As palavras lançadas são Sol, Luz, formosura e alegria, mencionadas nas duas primeiras estrofes e recolhidas na terceira. Por falta de gabarito melhor, fica o item D.


Questão 6
Gabarito: B


Comentários:
Embora mencione as religiosas e as festividades de caráter religioso, este não é um texto religioso, já que a ambigüidade da palavra passarinhos satiriza o celibato das freiras.
As décimas são as estrofes de 10 versos. Elas não costumam dispensar a rima, seguindo, geralmente, o esquema ABBAACCDDC, em que rimas interpoladas e emparelhadas (AA, BB, CC) se misturam. Isso vocês podem comprovar na décima da ficha e nos textos religiosos de origem medieval da ficha anterior.
Não houve uso de antítese no texto.


Questão 7
Gabarito: D

Comentários:
A única alternativa em que já o uso de antítese é a D, que por sinal é a única em que o excerto pertence a um poema de Gregório. O primeiro texto não consegui descobrir a fonte; o segundo faz parte de um belíssimo soneto de Carlos Drummond de Andrade; o terceiro, pela sua musicalidade e espiritualismo transcendente é um texto de características simbolistas, movimento da transição do século XIX para o século XX; o último possui uma relação profunda com o cotidiano, irreverente, típica do Modernismo, movimento do século XX.


Questão 8
Gabarito: A

Comentários:
Versos com linha reta e pura seguem a ordem direta, não o hipérbato. O soneto é cultista, portanto, não tem clareza de forma.
As imagens são complexas, paradoxais. Não há bucolismo, ou seja, a representação do espaço sereno do campo.
Como as imagens são paradoxais, não podem ser verdadeiras. Um rio de neve não se converte em fogo de verdade. A expressão é rebuscada e não natural. E o Barroco é emocional, não racional.
Não há ordem, há confusão, expressa no hipérbato. Não há harmonia, pois não há equilíbrio nas emoções. Não há razão, mas emoção profunda. O Barroco se opõe ao Renascimento.

O Imperador Vieira

Hello, carvões!

Vocês já foram tão pressionados que daqui a pouco digievoluem e eu começo a chamar de diamantes! :P Mas relaxem, que daqui pro fim do ano ainda piora! :P

Bora começar essa danada dessa revisão né? E começar pela realeza, porque Vieira é O CARA! Dá um gosto tão grande ler Vieira, entrar no ritmo dele! Mesmo quando não somos católicos e não concordamos com o que ele diz é impossível não reconhecer nele uma figura muito culta, um grande argumentador e um grande manipulador - de palavras e de pessoas também, claro!

Se esse caráter magnífico do grande escritor que Vieira é fica logo evidente, para ler Vieira com criticidade, e com aquele olhar clínico que consegue identificar os recursos que esse artista (que não é artista... lembrem que a função da linguagem conativa predomina sobre a poética nos textos de Vieira) usa, é preciso de um pouco de treino e o conhecimento dessas ferramentos do seu estilo. Então vamos lembrar quais são elas.

Os recursos estéticos e estilísticos usados por Vieira em seus sermões estão sempre a serviço do seu estilo conceptista (quevedista). O que Vieira quer, quando os usa, é buscar a clareza da idéia, mesmo quando seu pensamento chega quase a formar paradoxos.

Vocês devem ter notado que eu me referi a esses recursos com duas nomenclaturas: estéticos e estilísticos. Qual a diferença? Os estéticos são os que buscam os efeitos de beleza do texto, são as figuras de linguagem e outros tipos de manipulação lingüística. Os recursos estilísticos são elementos típicos da composição de um autor que não atingem, necessariamente, o efeito estético, mas que são tão presentes no conjunto da obra do camarada que através deles temos dica da autoria de determinado texto.

Ah, antes que vocês comecem a se estressar: não, não precisa saber quando é um e quando é outro para fazer prova nenhuma! Tem calma, criatura!

Respiraram mais aliviados? Então vamos prosseguir. Os principais recursos estéticos usados por Vieira são a comparação, a metáfora, a antítese e o trocadilho.

Comparação e metáfora não são bichos-de-sete-cabeças para vocês mais, não é? Para saber quando é uma e quando é outra é só procurar palavras e expressões de teor comparativo. Se estiverem lá, comparação; se não, metáfora. Então, o que há de mais relevante nelas é lembrar que Vieira costuma usar elementos da natureza ou do cotidiano comum das pessoas na construção dessas imagens. Por quê? Por que ele quer ser acessível, quer ser compreendido por qualquer pessoa. Assim, as imagens comuns, a que qualquer homem, por mais humilde que seja sua condição social, são as que mais significado vão trazer para o seu público. Por isso o céu, o mar, os peixes, as árvores, o ato de semear, as abelhas, o ato de se olhar ao espelho são imagens usadas por Vieira: qualquer homem do século XVII vai compreendê-las e assimilá-las, compreendendo e assimilando, por extensão, o conteúdo de sua mensagem.

"E a tal da alegoria que ele também usa? Não é a mesma coisa que comparação e metáfora?", tem alguém se perguntando. E depois pensando "Eu nunca sei quando é alegoria e quando é metáfora". Então seus problemas acabaram! :P

Alegoria, gente, é um recurso estilístico em que se faz uma metáfora para ações e sentimentos humanos através de uma narrativa curta. As parábolas bíblicas são alegorias. Em todas elas o pregador conta uma história que representa um comportamento humano e depois avalia a história, mostrando o que significa cada um de seus símbolos. É exatamente isso que alegoria é: uma narrativa metafórica (tem que ter a união de mais de um símbolo para se mostrar esse comportamento, como na alegoria do ver-se ao espelho = ver-se a si mesmo, do Sermão da Sexagésima), que tem sua simbologia explicada. Uma metáfora vem sozinha e não tem explicação no texto (senão, mata a metáfora, e o discurso fica pobre!).

Antítese, em tese, também é tranqüilo né? É aquele contraste dos elementos opostos. Para quem está ainda com aquela dificuldade em reconhecer quando é antítese e quando é paradoxo, a dica é: Vieira gosta muito de unir a antítese, um recurso estético, à reiteração (ou repetição), um recurso estilístico. É só lembrar do Sermão XIV do Rosário, em que ele vai enumerando as diferenças entre senhores e escravos. Além dessa dica, vamos lembrar também que no caso da antítese, como a oposição é de atributos de seres diferentes, ou de um mesmo ser, mas que só existem nele em momentos diferentes, esse constrate de opostos da antítese é perfeitamente aceitável do ponto de vista lógico, racional. Racionalmente nós compreendemos que uma pessoa pode ser muito boa aluna de Matemática e péssima em Português; compreendemos que uma pessoa esteja triste pela manhã e feliz à tarde; ou que um atleta que ganha medalha de prata chora, enquanto o que ganha a medalha de ouro, ri. Racionalmente essas coisas são perfeitamente compreensíveis.

Já o paradoxo, que Vieira também usa, embora com bem menos freqüência, é incompreensível do ponto de vista lógico, racional. Isso porque os elementos opostos convivem no mesmo ser, ao mesmo tempo e para nós, seres humanos, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Uma sensação ser ao mesmo tempo azeda e doce, boa e ruim, alegre e triste racionalmente não são explicáveis. Apenas a nossa compreensão emocinal do mundo consegue apreender que o amor é "dor que desatina sem doer" sem entrar em parafuso com isso. Emocionalmente nós compreendemos muito bem que o atleta de ouro chora copiosamente, feliz e triste, porque avalia as dificuldades e perdas no caminho e essas duas emoções se manifestam na mistura de reações que emocionam todos que estão perto, e lá vai mais gente chorar triste-alegre junto. Emocionalmente compreendemos (vá lá, os meninos têm mais dificuldade) aquela criatura desesperada por odiar amar um namorado cafajeste. Emocionalmente (tá, essa só serve para as mulheres) aquela crise existencial da TPM. Mas vá colocar lógica nessas coisas: a resposta é Servor error - No donut for you.

O trocadilho, para terminarmos o rap dos recursos estéticos, consiste num jogo com palavras que têm mesma forma (pelo menos mesma sonoridade), mas sentidos diferentes. Além do trocadilho, Vieira gosta também de demonstrar a sutil diferença que expressões sinônimas têm. Aqui a forma das palavras não é igual, mas se você achava que elas significam a mesma coisa, está redondamente enganado - pelo menos é o que ele vai acabar nos convencendo. Paço x passo é um exemplo de trocadilho; semeador x o que semeia é esse segundo uso (que não tem nome) recorrente no estilo de Vieira.

Tá, ja sei. Isso é coisa de autor cultista. Vamos repetir juntos pela enésima vez: "Vieira é conceptista, mas nunca descuida da forma do texto. Vieira é conceptista, mas nunca descuida da forma do texto. Vieira é conceptista, mas nunca descuida da forma do texto. Vieira é conceptista, mas nunca descuida da forma do texto. Vieira é conceptista, mas nunca descuida da forma do texto."

Foi o suficiente, né? Não? Então volte ao parágrafo anterior e leia mais três vezes, chatice! :P

Recursos estéticos, checado. Os principais já foram. Recursos estilísticos, quase checado. Faltam itens na nossa lista. Além da alegoria, da reiteração e da diferenciação dos quase sinônimos (por falto de uma nomenclatura melhor vai essa aí), ficou um item na nossa lista: pergunta retórica.

A tal da pergunta retórica é uma forma de condução argumentativa de um texto de caráter dissertativo. Ela está presente não só nos sermões de Vieira, mas pode aparecer em qualquer texto de caráter opinativo e, principalmente, persuasivo. Quando faz uma pergunta retórica, o autor elabora um questionamento que ele mesmo responde no texto, como uma forma de conduzir o raciocínio e rebater possíveis contra-argumentos. Eu conheço uma professora de Literatura doida que vive fazendo isso em sala de aula, quando ela acha que uma dúvida inevitavelmente vai saltar de uma das cabecinhas à sua frente. Vocês têm idéia de quem é? :P

"E além desses recursos, o que mais a gente tem que saber sobre Vieira?" Para o SSA-UPE, dêem uma boa decorada naqueles sermões que eu destaquei para vocês, com ano e local em que foram proferidos. A UPE tem dessas coisinhas. Fora o SSA, o mais importante é praticar interpretação de texto. Por isso aquela fichinha, só com questões, que eu vou comentar em outro post. E por isso eu vou deixar aqui um trechinho do famoso Sermão da Sexagésima. Já vimos em sala que esse Sermão, o mais famoso de Vieira, é um dos responsáveis pela ira de muitos dos seus inimigos dentro da própria igreja. Afinal, não era nada fácil para os padres da época ouvir que a culpa de as pessoas não seguirem o comportamento que a igreja pregava era deles. E eu comentei com vocês que nesse sermão Vieira se manifesta anti-cultista. Mas não pudemos ver a parte em que ele faz isso, né? Então, de brinde, olha ela aí.

Como em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? — No pregador podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa que é, e ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos no Evangelho. Vamo-las examinando uma por uma e buscando esta causa.

(...)

Será porventura [o culpado do não fazer fruto a palavra de Deus] o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afetado, um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo há de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes tudo é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitetura tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geometria tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho: “Caía o trigo nos espinhos e nascia”, “Caía o trigo nas pedras e nascia”, “Caía o trigo na terra boa e nascia”. Ia o trigo caindo e ia nascendo.

Assim há de ser o pregar. Hão de cair as coisas hão de nascer; tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo. Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa! Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martírio; uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não vêm! Há tal tirania? Então no meio disto, que bem levantado está aquilo! Não está a coisa no levantar, está no cair. Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há de ter três modos de cair: há de cair com queda, há de cair com cadência há de cair com caso. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as coisas porque hão de vir bem trazidas e em seu lugar; hão de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hão de ser escabrosas nem dissonantes; hão de ter cadência. O caso é para a disposição, porque há de ser tão natural e tão desafetada que pareça caso e não estudo.

Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi ele? — O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o céu. (...) Suposto que o céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter palavras. Sim, tem, (...) tem palavras e tem sermões; e mais, muito bem ouvidos. E quais são estes sermões e estas palavras do céu? — As palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas. Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte há de estar branco, da outra há de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão de dizer subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão de estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para sua lavoura e o mareante para sua navegação e o matemático para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem escrever entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: — estrelas que todos vêem, e muito poucos as medem.

Sim, Padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto. Mas fosse! Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. E possível que somos portugueses e havemos de ouvir um pregador em português e não havemos de entender o que diz?! Assim como há Lexicon para o grego e Calepino para o latim, assim é necessário haver um vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomara para os nomes próprios, porque os cultos têm desbatizados os santos, e cada autor que alegam é um enigma. Assim o disse o Cetro Penitente, assim o disse o Evangelista Apeles, assim o disse a Águia de África, o Favo de Claraval, a Púrpura de Belém, a Boca de Ouro. Há tal modo de alegar! O Cetro Penitente dizem que é David, como se todos os cetros não foram penitência; o Evangelista Apeles, que é S. Lucas; o Favo de Claraval, S. Bernardo; a Águia de África, Santo Agostinho; a Púrpura de Belém, S. Jerônimo; a Boca de Ouro, S. Crisóstomo. E quem quitaria ao outro cuidar que a Púrpura de Belém é Herodes que a Águia de África é Cipião, e que a Boca de Ouro é Midas? (...) Se houvesse um homem que assim falasse na conversação, não o havíeis de ter por néscio? Pois o que na conversação seria necessidade, como há de ser discrição no púlpito?