29.9.06

Voltando ao Romanceiro da Inconfidência

Como eu prometi, volto a postar os slides sobre o Romanceiro da Inconfidência. Se houver tempo, no fim de semana, eu posto um exemplo de adaptação de um dos poemas para a estrutura do diário. Só não vale copiar: critividade é um dos critérios para a atribuição da nota! :)

Os ciclos

Podemos dividir os fatos que compõem a narrativa de “Romanceiro da Inconfidência” em três partes ou ciclos:
a) ciclo do ouro;
b) ciclo do diamante;
c) ciclo da liberdade (ou da Inconfidência)

Todos estes ciclos envolvem a ascensão e a queda dos elementos. Notem que há uma gradação de valor nos elementos: ouro, diamante, liberdade. Como o ouro e o diamante, a liberdade brilhou intensamente nas Minas Gerais, mas como o ouro e o diamante, a liberdade trouxe desgraças, masmorras e mortes.


Ciclo do ouro

Fala inicial: apresenta a proposta geral do Romanceiro. O eu-lírico se apresenta dentro das cenas que comporão a história, com uma percepção mesmo física do que acontece (sinto, percebo, vejo, avisto). Ocorre aqui uma espécie de materialização desse eu-observador, que relata o que encontra em momento presente, mas já conhecedor dos fatos em sua totalidade. Os julgamentos e o convite à reflexão são típicos de passagens como

Ó meio dia confuso,
ó vinte-e-um de abril sinistro,
que intrigas de ouro e de sonho
houve em tua formação?
Quem ordena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?
Na mesma cova do tempo
cai o castigo e o perdão.
Morre a tinta das sentenças
e o sangue dos enforcados...
-liras, espadas e cruzes
pura cinza agora são.
Na mesma cova, as palavras,
o secreto pensamento,
as coroas e os machados,
mentira e verdade estão.

Ó grandes muros sem eco,
presídios de sal e treva,
onde os homens padeceram
sua vasta solidão...

Não choraremos o que houve,
nem os que chorar queremos:
contra as rocas da ignorância
rebenta nossa aflição.

Choraremos esse mistério,
esse esquema sobre-humano,
a força, o jogo, o acidente
da indizível conjunção
que ordena vidas e mundos
em pólos inexoráveis
de ruína e exaltação.

Ó silenciosas vertentes
por onde se precipitam
Inexplicáveis torrentes,
por eterna escuridão.


Cenário: apresenta o passeio do eu-lírico pela cidade de Vila Rica. Nesta passagem, o eu-lírico se conecta com o passado, vislumbrando os acontecimentos de outrora nos detalhes da cidade e da paisagem. O cenário (os lugares da cidade) e o eu-lírico compartilham os mesmos sentimentos e lembranças, numa fusão do eu com a paisagem que muito lembra a fusão dos árcades com o espaço natural.

Passei por entre as grotas negras, perto
dos arroios fanados, do cascalho
cujo ouro já foi todo descoberto.
As mesmas salas deram-me agasalho
onde a face brilhou de homens antigos,
iluminada por aflito orvalho.
De coração votado a iguais perigos,
vivendo as mesmas dores e esperanças,
a voz ouvi de amigos e inimigos.
Vencendo o tempo, fértil em mudanças,
conversei com doçura as mesmas fontes,
e vi serem comuns nossas lembranças
Da brenha tenebrosa aos curvos montes,
do quebrado almocafre aos anjos de ouro
que o céu sustém nos longos horizontes,
tudo me fala e entende do tesouro
arrancado a estas Minas enganosas,
com sangue sobre a espada, a cruz e o louro.
Tudo me fala e entendo: escuto as rosas
e os girassóis destes jardins, que um dia
foram terras e areias dolorosas,
por onde o passo da ambição rugia;
por onde se arrastara, esquartejado,
o mártir sem direito de agonia.

Romances: começam com a busca pelas jazidas até sua descoberta, envolvendo as lutas e mortes que se deram no processo, provocadas pela ambição desmedida. Depois, a partir da descoberta de Ouro Preto (e conseqüente fundação de Vila Rica), aprofunda-se o olhar sobre a cobiça e a ganância dos homens, que, no início, matava animais, florestas e vai se alastrando, como doença, até se matar tudo que há no caminho. É uma doença que se perpetua no tempo, atravessando as gerações “E gerações e mais gerações de netos afundariam nesse abismo” e atingindo a sociedade de modo a se registrar em seu folclore (é o ouro que cria o tipo folclórico “caçador feliz”. É o ouro que provoca o assassinato da donzela pela mão de seu pai) e em sua história (o assassinato de Felipe dos Santos morto e esquartejado pela fúria do Conde de Assumar). O Brasil é então apenas o menino adormecido, mas já prenuncia nesse herói a força e a coragem do Alferes inconfidente.
A partir daí, oscilam os elementos históricos factuais com os registros do cotidiano e da sociedade da época do ciclo do ouro. O romance “Da transmutação dos metais” brinca com o mito medieval dos alquimistas e o romance “De Nossa Senhora da Ajuda” descreve uma cena fictícia do Alferes ainda criança tendo sua sina demarcada nas suas súplicas e nas que o eu-lírico faz à santa.

18.9.06

Sobre Caramuru

Vocês me pediram muito para postar aqui sobre Caramuru, tema do nosso exercício desta semana. Pois bem, vamos fazer uma pequena revisão.

O poema Caramuru foi escrito por Frei José de Santa Rita Durão em 1781. Trata-se de um épico bastante tradicionalista, o qual resgata todas as regrinhas clássicas de uma epopéia: 10 cantos, em oitava rima do tipo ABABABCC, cujo assunto é uma vitória de um grande herói de uma passado remoto, a qual representa a vitória de uma nação.

Essa história, por que real, é a de Diogo Álvares Correia, náufrago português que conseguiu se tornar grande chefe dos índios tupinambás na Bahia, e auxilou a fundação da cidade de Salvador. O poema ficcionaliza a vivência de Diogo no Brasil até o momento em que este se tornou, efetivamente, funcionário do governo português. Vai, portanto, do naufrágio até o encontro com os representates nomeados para a capitania da Bahia, de volta a Salvador. Desta ficção, o que se sabe que realmente aconteceu foi o relacionamento de Diogo com Paraguaçu, a viagem deles à Europa para que se batizassem e se casassem e o retorno ao Brasil. O restante é baseado em folclore, em lendas, sem registro histórico oficial e, por isso, elementos de veracidade duvidosa.

Com "Caramuru", Santa Rita Durão aborda o indígena do ponto de vista da catequese (Diogo no livro é um personagem muito religioso), a qual servirá como elemento de dominação, de amansamento e de transformação do índio de um selvagem para um humano. Observem que Paraguaçu, a índia por quem Diogo se apaixona e se casa, é descrita com traços brancos, e sabe falar português. Ou seja, dentro de tantas índias que foram oferecidas a Diogo, a única digna de sua atenção (por que no livro ele é um herói casto) é aquela que se assemelha com uma européia.
As demais, como Moema - cuja morte por afogamento, na tentativa de alcançar o navio em que Diogo parte com Paraguaçu para a Europa, é o momento de lirismo mais intenso no livo - não mereceram a atenção do herói.

Caramuru - A invenção do Brasil, seriado da rede Globo para a comemoração dos 500 anos de descobrimento do nosso país, em 2000, por sua vez, é uma releitura irônica sobre os mitos da colonização brasileira e de seus heróis. O Diogo que assistimos na obra de Guel Arraes, transformada em filme tempos depois, é o típico anti-herói: medroso, covarde até, inconseqüente muitas vezes, bobo outras tantas. As mulheres da narrativa (Paraguaçu, Moema, Isabelle) têm Diogo na mão, sempre conseguindo dele o que querem. No lugar do herói, corajoso, que domina os índios por sua inteligência e que guerreia com bravura, temos, no filme, um artista sonhador, quase inocente, que se deixa cair facilmente nas situações arquitetadas pelos outros personagens. O domínio dos tupinambás vem por uma mera obra do acaso (ou da fé).

Se Diogo não é o grande herói da obra, quem toma seu lugar? Para resolver isso, é só lembrar quem consegue transformar toda situação da obra a seu favor. Pensem no final, em que Isabelle tenta, de todas as formas, conseguir o poder casando-se com Diogo... Quem consegue fazer com que a vilã se dê mal? Paraguaçu. A índia, esperta como ela, faz com Diogo o que quer, e consegue também manipular até Isabelle, uma cortesã experiente e cheia de lábia. Paraguaçu e Diogo se complemente em ingenuidade e esperteza e juntos é que vão criando essa espécie de identidade nacional, malandra, preguiçosa, sonhadora. Por isso o filme vai além de um relato de um evento histórico: ele acaba simbolizando a criação da identidade nacional, que mistura o romantismo, a melancolia e os altos ideais de Diogo, a Europa, com a picardia, a sensualidade e a praticidade dos indígenas, representada por Paraguaçu.

É importante assinalar também uma visão do índio muito marcante em toda obra. Longe de ser um "bom selvagem" ou de apenas um "selvagem", o índio brasileiro é apontado às vezes com malícia e uma certa dose de preconceito, às vezes com bom humor e boa dose de realismo. A cultura índia, em seus costumes rituais, como a antropofagia, e em sua liberdade sexual, além do desapego à matéria, e o conseqüente choque com os valore europeus são várias vezes reforçados no filme, com bastante isenção até. Porém, ao mesmo tempo, boa parte dos momentos cômicos da obra baseiam-se na caricatura do índio como preguiçoso ou promíscuo, o que pode revelar um estereótipo talvez bastante afastado da realidade. O indígena, no filme, é uma figura pitoresca, ambígua, engraçada, mas da qual raramente se tem uma relação de identidade como se tem com personagens mais realistas (a sensação de conhecer alguém daquela maneira ou de ser um pouco parecido com ele).

Bom, é isso. Entre filme e livro, conforme estudamos, há uma relação de paródia bastante marcante. Na intenção de resgatar o livro e atualizá-lo, personagens foram acrescentados, retirados, modificados (como é o caso de Moema). Tudo para se reforçar a ironia sobre a ingenuidade propagada pelo texto de Santa Rita Durão e enfatizar-se as reais motivações dos homens europeus da época (exploração de ouro, da colônia e de sua gente). Ter uma visão ampla de uma e de outra ora é de extrema importância para que se possa discutir a identidade nacional, conforme vista no passado e no presente. Ufanismo e utopia confrontam-se, na mesma história, com criticidade e ironia. Estas são palavrinhas chaves para entender-se as obras.


Espero que o texto tenha ajudado.
Beijos e até a próxima.

8.9.06

Romanceiro da Inconfidência

Como vocês pediram, vou deixar os slides da aula sobre o livro. A cada dia, nesse feriadão, deixarei para vocês um slide, para que os posts não fiquem excessivamente longos. Qualquer dúvida, gritem! : )

Tema
O tema principal é a própria Inconfidência Mineira que dá título à obra. Porém, para escrever sobre isto, Cecília Meireles busca o passado mais remoto de Vila Rica (Ouro Preto), que se inicia com a descoberta do ouro, envolve a caracterização da sua sociedade no século XVIII, descreve o levante republicano dos inconfidentes e suas principais figuras humanas e narra o fim trágico.
A digressão histórica é importante porque ao fim de cada etapa histórica narrada, há o mesmo movimento de opressão por parte de quem tem poder. A cada vez que a população, a massa, sonha com riqueza e prosperidade, há uma desgraça, como a de Felipe dos Santos e a do contratador Fernandes, que prenunciam o destino dos inconfidentes. É como se Cecília, com essa repetição de estrutura narrativa, lembrasse-nos que no Brasil, a história sempre se repete: os ricos e poderosos lutam para manter seu poder a qualquer custo e a grande massa segue sofrendo, eternamente alijada das preciosidades que pode encontrar no mundo. Seja, elas de ouro, de diamante, ou de liberdade.

A visão do tema
A perspectiva que a autora apresenta sobre o tema no conjunto de poemas é uma visão dramática e lírica dos eventos. Não esqueça: O “Romanceiro da Inconfidência” é um texto que parte de uma reflexão sobre a história concreta do levante mineiro e alcança uma dimensão lírica, tornando-se uma interrogação sobre o sentido das ações humanas. Não é um texto que se limita a lamentar o que houve, mas sim ao conjunto de elementos que, sempre se repetindo, perpetuam as desigualdades sociais e o sofrimento dos poucos que sinceramente lutam pela causa.


Estrutura

Cenários
São poemas que descrevem ambientes e marcam as mudanças de atmosfera no romanceiro. Nos cenários ocorrem um ponto alto de lirismo, em que o “eu” reflete sobre o espaço para nele localizar os acontecimentos. É como se o ambiente físico e o eu-lírico se comunicassem em lembranças, conversassem, compartilhassem da mesma visão piedosa dos acontecimentos. Isto nos lembra muito a relação homem-natureza do período árcade, em que a natureza é um elemento vivo, cheio de alegria e vida, e que entra em comunhão com o estado pérpetuo de carpe-diem do eu-lírico. Aqui, embora os sentimentos sejam outros, ocorre a comunicação entre ambos.
Lembre-se: cada cenário representa uma transição para uma nova etapa do poema. Assim, a primeira parte, conhecida como ciclo do ouro, é introduzida por um cenário. Quando o próximo cenário surgir, começa a etapa seguinte, o ciclo do diamante, e mesmo com as demais etapas do texto.

Falas
São poemas em que o eu-lírico intervém na narrativa, tecendo comentários e convidando o leitor a refletir sobre os fatos revividos no relato. As falas não têm a mesma regularidade de distribuição que os cenários. Um mesmo ciclo (ou etapa da narração) pode apresentar mais de uma fala.

Romances
São os oitenta e cinco poemas que reconstituem a história, compondo seu fio narrativo. Os romances não são dispostos, necessariamente, na seqüência cronológica dos acontecimentos: ora aparecem isolados, ora constituem-se em verdadeiros ciclos (o de Chica da Silva, o do Alferes, o de Gonzaga, o da Morte de Tiradentes, o de Gonzaga no exílio).
Muitas vezes (especialmente na Morte de Tiradentes) há uma seqüência de romances de mesmo tema, que apresentam as vozes internas das diversas pessoas envolvidas nas cenas narradas. Estas vozes internas geralmente estarão assinaladas ou com itálico ou por parênteses.