14.3.06

Cultismo e Conceptismo

No início do nosso trabalho, você leu dois textos: o sermão em que Vieira tenta convencer os fiéis a se sujeitarem ao sofrimento humano evocando o sofrimento dos mártires da Igreja e o poema de Gregório em que ele demonstra que deseja unir-se a Cristo para, junto com as dores do Salvador, expiar seus pecados. Cada um deles pertence a um diferente estilo de escrever literatura do movimento barroco: o conceptismo e o cultismo.
Estes dois estilos, que não se excluem, enfatizam elementos diferentes do texto. O conceptismo, assim como o nome lembra (concepção = idéia, conceito), enfatiza o plano das idéias do texto, e procura ressaltá-las, evidenciando-as e as tornando o mais claras possível. O cultismo, por sua vez, é o culto da forma do texto e procura enfatizar a expressividade deste através do uso (e abuso) das figuras de linguagem.
Explicando mais um pouquinho o mesmo ponto: o cultismo valoriza a forma e a imagem construída no texto através de jogos de palavras (uso de metáforas, metonímias, hipérboles - exageros - antíteses, paradoxos e comparações). Este jogo de palavras brinca com os sentidos que são construídos ao longo do texto. Observe um exemplo num poema de Gregório de Matos:


Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

Observe que o texto de Gregório consegue transmitir ao seu leitor muito da angústia do eu lírico através da confusão dos sentidos das palavras, do não entendimento, do questionamento do mundo. O nascer e o questionamento desta ação, a constância que se revela inconstante, e a firmeza que tem como característica ser inconstante (e por isso não ser firme) revelam uma dificuldade em entender e aceitar o mundo real como ele é. E, como você deve lembrar, estas características opostas num mesmo ser são formalizadas pelo uso do paradoxo.

O conceptismo, por sua vez, valoriza o conteúdo do texto num intuito persuasivo, através de jogos de idéias os quais seguem um raciocínio lógicoque se propõe evidente. É freqüente o uso de comparações explícitas, analogias e até parábola (uso de símbolos e seres inanimados para se contar uma estória de forma a melhor captar o entendimento do leitor). Observe um exemplo de texto conceptista num trecho de um sermão do Pe. Antonio Vieira, conhecido como Sermão de Santo Antônio.

Quis Cristo que o preço da sepultura dos peregrinos fosse o esmalte das armas dos portugueses, para que entendêssemos que o brasão de nascer portugueses era a obrigação de morrer peregrinos: com as armas nos obrigou Cristo a peregrinar, e com a sepultura nos empenhou a morrer. Mas se nos deu o brasão que nos havia de levar da pátria, também nos deu a terra que nos havia de cobrir fora dela. Nascer pequeno e morrer grande é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra; para nascer, Portugal; para morrer, o mundo.

Observe que neste texto, Vieira procura justificar o expansionismo português com as Grandes Navegações e consolar os exilados no Brasil das saudades de sua terra Natal. Ser peregrino é a missão que Deus, segundo ele, deu aos portugueses. Para comprovar esta afirmação, Vieira usa dois argumentos: Deus deu pouca terra aos portugueses para nascerem, numa alusão à pequena extensão do país, mas deu muitas terras onde morrerem, numa referência às várias colônias de Portugal em três continentes (América, África e Ásia). Portanto, como dádivas divinas, as colônias para onde migram os portugueses devem ser recebidas/habitadas com alegria. A intenção de Vieira é fazer com que os colonos encarem a vida longe de Portugal com a alegria estóica* dos cristãos que suportam todos os fardos para expiar os pecados e alcançar a salvação.

Na Espanha, estes estilos foram também conhecidos como Quevedismo (conceptismo) e Gongorismo (cultismo). Para facilitar a associação, lembre-se que o nosso Gregório de Matos era cultista. Observe que os "gês" que se repetem no nome: é um bom recurso de memorização.

* Estóica = Que tem a qualidade do estoicismo, corrente filosófica grega que considera que cada ser ocupa um lugar predestinado na organização do mundo. O sofrimento, para os estóicos, só acontece quando nos recusamos a seguir os destinos que nos foram traçados. Se alguém sofre é porque trilha (ou tenta trilhar) um caminho contrário ao seu destino.

7.3.06

A linguagem barroca - exercícios

Como prometi, estas são as resoluções dos exercícios da página 118.

1. Os três textos apresentam motivos religiosos. Mostram o sofrimento como uma forma de purificação da alma.

2.
a) Arrependido de seus pecados, o eu lírico identifica-se com a imagem de Cristo e deseja unir-se a ela, integrando-se a Deus e entregando-se a Ele. Observe que, de certa forma, o texto pede o perdão pelos pecados (braços prontos para acolher, olhos prontos para perdoar) e, na última estrofe, clama por uma união do eu lírico com Deus (ficar unido, atado e firme), numa forma de garantir a salvação da alma.

b) A culpa é apresentada em palavras como "castigar", "perdoar", "condenar". O texto mostra que o eu lírico cometeu pecados, mas o Cristo representado na imagem está pronto para a "fazer a salvação", perdoando o pecador.

3.
a) A mão sobre a cruz conecta o corpo ao objeto de tortura, fazendo uma ligação física entre eles. O movimento dos dedos contraídos é típico dos momentos em que sentimos dor.

b) Tristeza, solidão, abandono são alguns dos sentimentos que podem ser representados por esse olhar. Pode estar também, contido nele, o medo do sofrimento e da morte, pelo qual todos os homens passam.

4.
a) perdoar/condenar; despertos/fechados; eclipsados/abertos.
Notem que estes pares opostos convivem, ideologiamente, na mesma figura. Isto faz com o que aquilo que o livro didático chama de antítese seja, na verdade, um paradoxo.

b) Todos os versos da primeira estrofe. Na ordem direta, ficariam assim:

Vou correndo a vós, braços sagrados,
Desobertos nessa cruz sacrossanta,
Que estais abertos para receber-me
E estais cravados, por não castigar-me -> este por tem o significado de para

c) A metonímia é a substituição de uma palavra por outra que a representa. Se dissemos "O Brasil é muito trabalhador" usamos Brasil no lugar de os brasileiros. O mesmo ocorre, por exemplo, em "Adoro ver Steven Spielberg". Aqui o nome do diretor é usado para representar os filmes que ele faz.
A metonímia, no texto, é feita através das partes do corpo do Cristo, a quem o autor se dirige, no lugar da imagem do Cristo crucificado. Este tipo de metonímia é chamado de "parte pelo todo". Através desta metonímia Gregório consegue enfatizar os diversos tipos de sofrimento pelos quais Jesus passou na crucificação e evita a repetição desnecessária de termos.

d) No texto de Vieira a sonoridade é trabalhada através da repetição constante do fonema /s/, presente nos plurais em que foram flexionados a maior parte dos substantivos. O fonema /m/ também se repete bastante no texto, principalmente nos verbos (penduravam, batiam, martelavam, açoitavam).
As imagens fortes ficam por conta da descrição dos diversos tipos de tortura a que eram submetidos os mártires da igreja durante o Império Romano. "Beber chumbo derretido", "arder como tochas" e "imprensavam os ossos, até ficarem uma pasta confusa sem figura" são algumas passagens.

5.

a) A morbidez é trabalhada na descrição detalhada do sofrimento do Cristo, seja verbalmente, seja visualmente.
b) Na descrição minuciosa dos mecanismos de tortura que os homens podem criar.
c) Se os mártires passaram por sofrimentos tão extremos e insuportáveis, o bom cristão, temeroso a Deus, é perfeitamente capaz de renunciar aos prazeres mundanos para alcançar a salvação.

6. As inversões são recursos que tornam a lógica do raciocínio do texto mais difícil de ser acompanhada, e dificulta sua compreensão, restringindo o entendimento do texto a um grupo privilegiado de pessoas. Além disso, o vocabulário usado em ambos os textos não é trivial, mesmo para a época, o que é também uma forma de elitizar sua compreensão.